O problema da esquerda de raiz marxista é apontar as críticas ao alvo errado. Atacam o capitalismo -- embora recentemente utilizem mais o termo neo-liberalismo. Ora, os princípios que norteiam a esquerda, de promover mais justiça social, igualdade entre géneros, entre raças e religiões, recusa do nacionalismo fanático, distribuição de riqueza, são admiráveis em minha opinião. São os meus princípios. Um deles é a redução das desigualdades, um ideal que eu admiro. O problema da esquerda marxista é pensar que a causa principal das desigualdades é o capitalismo. Agora, pelo menos no Portugal dos últimos 30 anos, não é. Há tremendas desigualdades, sim, e nesse aspecto Portugal até está pior que a generalidade da Europa, mas essas desigualdades não são criadas pelo capitalismo. Há fortunas, mas a grande maioria delas não tem origem no capitalismo.
O capitalismo gera desigualdades quando mais não seja por promover um aumento brutal da produção e produtividade daqueles que nele participam - ora, existirá sempre uma camada que não participa, e essa camada produzirá pouco e será pouco produtiva. A diferença (desigualdade) entre os primeiros e os segundos será necessariamente abissal.
Não concordo que a grande maioria das fortunas não tenha origem no capitalismo ... entre fortunas pequenas e grandes, MESMO ASSIM, a maioria deverá ter vindo do capitalismo (sendo que muitas das fortunas herdadas também o terão tido na génese). Obviamente, existirão ALGUMAS, talvez muitas, fortunas que vieram de negociatas com o Estado, fraudes, etc, mas serão mesmo assim a minoria.
Discordo, ambora isto só se resolvesse indo examinar os dados. Quantas pessoas existem em Portugal, que se podem chamar "ricas"? Não sei, mas para efeitos de avaliar as desigualdades, interessa considerar as classes alta e média-alta. Há uma série de pessoas da classe média alta que ganham muito, aí acima de € 5000 / mês líquidos cada pessoa. Para todos os efeitos, quem ganha assim é pelo menos muito abastado. Ora, dessas pessoas, quantas têm esse rendimento porque criaram uma empresa e ela teve sucesso? Creio que uma minoria. A maioria ganha assim porque tem bons salários, muitos no Estado e em empresas públicas, autarquias, institutos. Dessas, uma parte, talvez minoritária (?) ganha mais com a corrupção. Outros não é exactamente corrupção, mas estão onde estão por favor / cunha -- uma espécie de corrupção mais suave. Finalmente ainda outros estão lá por mérito, e tendo-se simplesmente candidatado sem cunhas. Se considerarmos tudo isto, creio que aqueles cujos rendimentos são sobretudo capitalistas (dividendos ou juros de investimentos em empresas que criaram) são uma minoria.
Bem, mas 5000 EUR/mês não criam fortunas. A única coisa que ainda vai atraindo pessoas para formar empresas é que o upside de uma que corra bem é, apesar de tudo, superior a isso. É claro que a probabiidade de se atingir esse upside é bastante menor do que a de conseguir esses rendimentos via Estado.
Sim, não criam automaticamente fortunas. Mas até podem criar, se um casal que ganha 2 X isso decidir, por ex, usar uns 4000 / mês para reforçar a sua carteira de investimentos, isso dá 48k / ano acrescentado à carteira, e isso, acumulado durante bastantes anos, já dá uma pequena fortuna. Pelo menos quem ganha aquilo pode construir a fortuna se desejar.
Eu concordo contigo que a maioria das pessoas abastadas / média alta, não tem o que tem devido à corrupção. No entanto, também a maioria não o tem por ter criado uma empresa de raiz e viver dos rendimentos da mesma, e por isso a maioria das situações de ser abastado ou de classe média alta (que é o que mais conta para o Gini) não tem origem directa no capitalismo. É mais devido a salários muito mais elevados do que a média.
Definindo dessa forma concordo. Antes falava de fortunas, aí não concordo - a maioria virá do capitalismo. Mas sim, Portugal nos rendimentos elevados (e pior ainda nas pensões elevadas*) está altamente distorcido, e essa distorção contribui certamente para algum atraso relativo deste país. O Estado é demasiadas vezes o caminho mais seguro para tais rendimentos elevados.
Duas coisas adicionais:
1) Pessoas que já revelem uma opção pela segurança desse caminho devem depois ter uma probabilidade inferior de fazer como dizes (poupar uma parte significativa do rendimento para o colocar afincadamente em investimentos de risco, atingindo mais tarde uma fortuna);
2) A razão pela qual digo que a atractividade do Estado é um potencial negativo para o país é algo engraçada. Essa atractividade irá atrair uma proporção dos melhores que o país tem para oferecer, que irão para médicos, juízes, diplomatas e afins, onde com grande probabilidade atingirão uma vida confortável e muito acima da média nacional. Isso é negativo especificamente porque dá um caminho relativamente seguro a muitos dos melhores, e logo um caminho que mesmo que os dirija para funções importantes, também os dirige para funções intrinsecamente "pouco produtivas" (no sentido de que um médico, juíz, diplomata, etc apenas consegue ter um efeito sempre sobre um universo de pessoas muito limitado). Seria melhor para o país que as funções do Estado fossem menos atraentes e mais passíveis de serem ocupadas sem ser pelos melhores** - de forma a que o estilo de vida da classe média alta/alta necessitasse de caminhos potencialmente mais difíceis via empreendimento ou funções críticas em empresas privadas. Isso iria levar a que muitos dos melhores tentassem percorrer esses trilhos mais difíceis, levando potencialmente a que caíssem em funções com potencial para muito maior produtividade (aqui entenda-se, funções que em última análise permitem servir milhões de pessoas de cada vez, em mercados muito mais alargados).
Obviamente, nem todos os melhores vão para o Estado. Mas muitos vão, uma proporção grande (ainda que talvez agora mais limitada quer pelos cortes, quer pela maior dificuldade em ser contratado - o que a prazo poderá ser positivo para o país).
* Quase 80% das pensões acima de 1500 EUR em Portugal vão para ex-funcionários do Estado (isto de memória).
** Ao ocupar mais do Estado por pessoas com menor qualidade, seria altamente desejável que o sistema em si fosse substancialmente melhor - pois de outra forma ainda saíria o Estado degradado. Hoje, temos o Estado que temos apesar de ter atraído muitos dos melhores. Seria um Estado bem pior se, com o mesmo sistema, usasse actores de qualidade inferior. Isto seria facilmente colmatado por um sistema de educação e saúde do género que defendo, em que a concorrência melhoraria os resultados mesmo usando actores inferiores. Na justiça seriam também necessárias alterações esmagadoras - pois presentemente até usando os melhores a coisa não funciona de todo.
Estou 100% de acordo com esta visão, e julgo mesmo que inovando nestas questões relacionadas com o Estado, conseguiriamos criar uma dinâmica para colocar este país à frente em alguma coisa, e vez de cronicamente andarmos na cauda. Não estou a dizer que o problema de atraso estrutural do país é exclusivamente culpa do estado, mas dado o peso actual do mesmo na economia e na sociedade
terá o papel decisivo.
Como Português, gostaria que o meu país fosse líder em vez de seguidor, que tivesse uma framework criada para inovar e produzir dando possibilidades em vez de castrar e restringir, que tivesse uma estratégia para a década em vez de navegar à deriva, que potenciasse capacidades em vez de abusarmos das desculpas da pequenez, da periferia. Eu sei que é possível, temos capacidade, e vejo outros que eram improváveis mas que conseguiram.
Nunca foi tão fácil como é hoje, nunca houve tantos milionários/bilionários como há hoje, nuca foi tão barato abrir empresas, nunca houve tanto capital disponível para investir em ideias, nunca houve mercados acessíveis com a dimensão como existe hoje.
Existe hoje um mundo de oportunidades fora do rectângulo, que podem ser aproveitas mesmo a partir do nosso rectângulo.
Mas infelizmente o rumo é o de continuarmos a fazer mais do mesmo (salvo pequenos ajustes de curo prazo), fechados sobre nós mesmos, e esperar resultados diferentes. Resumindo, continuamos no todo como como muitos que vou vendo por aí, de semana em semana à espera de ganhar no Euromilhões.
Talvez seja hora de percebermos que na única altura da nossa história que arriscamos e nos atiramos ao mar, não sei se por estratégia ou se por desespero, acabamos por colher os beneficios e criamos o nosso lugar na história. Talvez seja a hora de apostar nos "Descobrimentos 2.0".
Finalizo dizendo que num país em que nenhum político, influenciador ou elite fala com desassombro sobre estas questões, mesmo podendo-se discordar, dou-te os parabéns Incognitus pela liguagem clara e simples e aproveito para dizer que sou um seguidor atento do que vais fazendo e por consequência deste fórum.
Acho que muitas vezes tem uma dinâmica, que não vejo igual, mesmo em fórums internacionais por isso vou sempre seguindo atentamente.