Aqui vai, uma bela (en)cena(ção)
de teoria política monetária -:)
IMPERADOR. Que propício destino aqui te trouxe
Dos encantos das Mil e Uma Noites?
Se tão fértil és qual Scherazade,
Estás do meu agrado bem seguro.
Acode pronto, quando o mundo de hoje,
Como sucede a miúdo, me aborreça!
MARECHAL (entra apressadamente.)
Sereníssimo, nunca em vida minha
Julguei novas trazer tão prazenteiras
Como as que ora de júbilo me inundam
E na tua presença me transportam!
Saldadas ‘stão s dívidas, té a última,
Desarmadas da usura as cruas garras,
Liberto eu de uma infernal angústia;
No empíreo não há mais alegria!
CONDESTÁVEL (logo após.)
Pago em dia o seu saldo têm
[as tropas,
Contratado outra vez está o exército,
Cada soldado sente sangue novo,
Taverneiros e moças o conhecem.
IMPERADOR. Como largo respira o peito vosso!
Do confrangido rosto as rugas fogem!
Apressados entrais!
TESOUREIRO-MOR (que ali se acha.)
Pergunta a este,
Pois obra sua é tudo!
FAUSTO. Expor o caso
Ao chanceler pertence.
CHANCELER (entra pausadamente.) O fim da vida
Ditoso dizer posso! – Ouvi, e vede
A fatídica folha que as misérias
Em riqueza abundante há transformado.
(Lê:)
Saber fazemos nós a quem pertença
Que vale mil coroas esta nota.
Para penhor seguro, destinamos-lhe
Os tesouros no Império soterrados.
Mandado está que sirva ao pagamento
Esse valor em breve à luz trazido.»
IMPERADOR. Grande crime receio, burla imensa!
Quem contrafez ousado a firma augusta?
Atentado tamanho impune fica?
TESOUREIRO-MOR. Recorda-te! : Tu mesmo o assinaste
Esta noite passada! Eras vestido
De grande Pã! O chanceler connosco
Falou-te assim. «Da pena com dois traços,
Outorga o que será júbilo imenso
E salvação do povo!» A assinatura
Bem distinta firmaste, mil artistas
Logo a multiplicaram. Por que chegue
A todos o proveito, em continente,
Toda a série estampámos: temos prontas
Notas de dez, de trinta, de cinquenta,
De cem. Quanto lucrou com isso o povo
Nem tu sabes! Olha a cidade, há pouco
Como em sono de morte sepultada:
Revive tudo, goza, alegre folga!
O teu nome, que há muito o mundo preza,
Jamais com tanto amor fora saudado.
O alfabeto agora é já supérfluo:
Com esta firma só, tudo é ditoso.
IMPERADOR. E para o meu bom povo, isto val ouro?
Serve à corte, ao exército de paga?
Devo, embora me espante tolerá-lo.
MARECHAL. Impossível seria os fugitivos
Novamente colher, que se espalharam
Como o raio veloz, por toda a parte.
Abertas sem cessar, casas de câmbio
A ouro ou prata trocam cada nota,
Com desconto. Dali corre-se aos talhos,
Aos padeiros, às tendas: meio mundo
Só parece pensar em lautas mesas,
Em adornos custosos o outro meio.
Aqui vendem-se telas, além cortam-se;
«Viva o Imperador!» soa nas ruas;
Nas tavernas rescendem os assados;
Dos pratos ao tinir, saltam as rolhas.
MEFISTÓFELES. Quem sozinho passeia nos terraços,
Muita beldade vê, trajando galas,
De penas de pavão nos ricos leques
Meio rosto ocultando. Com sorrisos
Olham as notas mágicas. Mais pronto
Que com voz eloquente ou vivo engenho,
O supremo prazer de amor se alcança.
Ninguém com bolsas de ouro se incomoda:
Uma nota no seio entra tão fácil,
C’uma carta de amor tão bem se junta...
O padre no breviário as traz devoto;
Para marchar mais rápido, o soldado
Da pesada cintura os rins liberta.
Perdoe a Majestade, se pareço
Destarte rebaixar tão grande assunto!
FAUSTO. O cabedal imenso que sem giro
No solo de teus reinos se acoberta
Inútil jaz. A mente mais ousada
Tão colossal riqueza a custo abrange;
No seu voo mais altivo a fantasia
Fatiga-se e não chega a concebê-la;
Espíritos porém, no ver profundos,
Confiança infinita depositam
No que não tem limites.
MEFISTÓFELES. Em vez de ouro,
De pérolas em vez, um papel destes
É tão cómodo!: Vejo num momento
Quanto possuo; de trocas nem contratos
Para isso careço, amor e vinho
Gozo a meu belprazer. Metal desejas?
O cambista está pronto, e, se não basta,
Escava pouco tempo: grilhões, taças
Em hasta são vendidos; prontamente
Se amortiza o papel e é castigado
Do insolente cétptico o escárnio.
Ninguém quer outra coisa, costumaram-se.
De ora àvante nas terras do Império
Ouro, jóias, papel temos a rodo.
IMPERADOR. Tão grande bem vos devem meus Estados;
Seja a paga ao serviço acomodada:
Entrego-vos do solo as profundezas,
Dos tesouros sereis dignos custodes.
Conheceis o jazigo recatado
E vasto. Quem quiser fazer pesquisas,
Tenha licença vossa. Tesoureiros,
Reuni-vos, de vosso novo cargo
Alegres revesti as dignidades,
Fundindo em harmonia proveitosa
O mundo subterrâneo c’o superno
TESOUREIRO-MOR. Dissenções entre nós jamais, que muito
Ganho em ter por colega o feiticeiro!
(Sai com Fausto.)
J. W. Goethe, Fausto, Trad. de Agostinho de Ornelas (1867),
Reimpressão da nova edição ao cuidado de Paulo Quintela,
Atlântida, Coimbra, 1958, vv 5952-6065