Olhando para o que se está a passar, eu não sei se não há estátuas simplesmente a ser retiradas provisoriamente para não serem destruídas. Não sei, veremos daqui a uns tempos. A questão das estátuas merece alguma reflexão, e eu li este artigo no FT
https://www.ft.com/content/1117dfb6-8e51-46ec-a74b-59973a96a85a?fbclid=IwAR19W_TdURkgyqMgyd4Qi488PqhRV-jLtCQ5CYYgmCqXUON-bYFoXcgXNSs que tem algumas reflexões interessantes.
Uma estátua não é a História, a História está escrita e deve ser lida considerando o contexto em que ocorreu. Uma estátua é uma glorificação. Todas as pessoas glorificadas por estátuas tiveram as suas qualidades e os seus defeitos, mesmo considerando o contexto, porque avaliar essas qualidades e defeitos considerando os valores actuais é absurdo. Portanto, mesmo sendo a escravatura algo normal antigamente, é diferente alguém que promoveu e fez vida da promoção e comércio de escravos, e ficou célebre por isso, ou alguém que simplesmente tinha escravos porque na sua classe social todos tinham, e ficou célebre por tudo menos isso. Porque a questão está aí: quando alguém passava pela estátua do Edward Colston via a glorificação de um comerciante de escravos, mesmo sendo filantropo, algo que não me parece aceitável em pleno século XXI (não a comercialização, mas ainda a glorificação), pelo que acho bem ser retirada do espaço público, mas colocada num museu com o devido enquadramento histórico (e não ser atirada ao rio por vândalos, claro). Quando alguém passa pela estátua do padre António Vieira, não vê um esclavagista ou um racista, vê um dos mais importantes escritores do nosso país, um jesuíta que, tendo em conta o que se passava no Brasil na altura, defendeu os indígenas. Claro que tinha escravos, quem não tinha na sua classe? Mas mesmo tendo, nos seus sermões tem já uma reflexão sobre a inconsistência humana e mesmo cristã em ter escravos, e na diferença abrupta de estatuto entre dois seres humanos, como existia entre o escravo e o seu dono.
A discussão nos EUA é mais difícil porque muita gente no sul não aceita ainda hoje o desfecho da guerra civil, e isso é um problema. A história deles é bem mais "recente" e no que toca às questões raciais, mais violenta e mais presente. Recomendo que vejam o documentário da 13ª emenda do Netflix para perceberem melhor como o racismo nos EUA, principalmente no sul, tem sido mantido disfarçadamente institucionalmente. Como a emenda da abolição da escravatura manteve uma clausula de excepção para prisioneiros, e como a partir daí os prisioneiros negros dispararam. Como toda uma propaganda anti-negros foi lançada criando fantasmas que levaram à condenação de uma comunidade que saía de um problema para entrar noutro. E um país que se rege como bastão da liberdade, a meu ver, não devia glorificar um passado de exploração de outros seres humanos como mercadorias ou máquinas de trabalho. Não me parece que faça sentido hastear bandeiras da confederação, quando esta já não existe, ou mais uma vez, glorificar personalidades cujo feito em vida e pelos quais são conhecidas e glorificadas, está directamente relacionado com a opressão aos negros e indígenas.
Basicamente, na minha opinião, há que distinguir obras de arte (filmes, livros, peças de teatro, músicas, etc), que são o que são, expressões de autores e artistas, e estátuas e glorificações públicas. Nestas últimas, nada deve ser destruído, mas há algumas que faz sentido serem removidas do espaço público para um espaço onde não sejam glorificadas mas sim contextualizadas historicamente, como os museus.