Varoufakis vs. Piketty: um embate para prestar atenção
Que as esquerdas não precisam de muitos motivos para se dividir é um clichê fácil, mas as razões da divergência são importantes e interessantes.
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[ ] A primeira dificuldade é que Piketty, [ ] não distingue riqueza de capital e exclui apenas os bens móveis de consumo (tais como automóveis e eletrodomésticos). Moradias, obras de arte e barras de ouro não fazem diferença para o processo de produção, mas ele os trata da mesma maneira que tratores e robôs. Isso torna duvidosa qualquer tentativa de estudar e prever o crescimento e o desempenho da economia a partir dessa massa de “pseudocapital” da qual cerca da metade nada tem a ver com produção.
Pareceu-me pertinente esta distinção, mas depois considerei que a riqueza em si, - incluindo o ouro dos bancos centrais -, é um factor de
garantia do crédito, o qual activa e estimula o investimento e os empreendimentos produtivos. Por essa razão, já me pareceu de alguma pertinência somar essa riqueza ao capital dos meios de produção.
Dificuldade análoga é tratar como “salários” os ganhos astronômicos de altos executivos, parte nada desprezível da renda nacional em países como os EUA, mesmo se são explicitamente vinculados ao lucro e constituídos de bonificações e opções de compra de ações.
Esta simplificação talvez fosse de evitar porque, embora o «saber-saber», como o «saber-fazer» sejam apanágio de viventes-trabalhadores, eles são mais o resultado de um capital-conhecimento acumulado do que trabalho vivo em acção: geram efeitos multiplicadores, como todo e qualquer outro instrumento ou equipamento de trabalho: capital, portanto.
Valores de mercado são governados por expectativas e pela taxa de remuneração do capital, mas Piketty considera essa taxa e o montante do “capital” como variáveis independentes, o que é inconsistente e conduz a um círculo vicioso.
É o que me parece. E embora tenha tido o "gosto aritmético" de reconhecer que a desigualdade de riqueza não pode deixar de crescer se a taxa de juro superar a de crescimento do produto, não entendo que isso seja sustentável sem termo certo. Pareceu-me assim, as tese de Picketty uma certa 'brincadeira' 'histórico-aritmética' devidamente infundada. [
Entenda-se esta maneira de falar em termos hábeis, e de grande ligeireza: já disse que não li a obra e sou um modesto licenciado e não um expert!]
Ainda mais problemático do ponto de vista político é tratar a participação do trabalho e do capital na renda como resultado mecânico [!] das suas leis da acumulação [ ]
Isto nem sequer percebi, quanto ao trabalho; quanto ao capital, não tal resultado mecânico, conforme crítica acima
O modelo de Piketty supõe que toda poupança se transforma em riqueza (logo capital, em sua definição) e não há formação de riqueza se não for por meio da poupança.
Tendencialmente, sim, pela intermediação bancária e do crédito às empresas. E também pela tal aptidão da riqueza (ouro, moradias de luxo, etc.) a constituirem-se como penhor do crédito e da circulação fiduciária.
Isso tem pouco a ver com o mundo real, como mostra a formação da bolha imobiliária, durante a qual o valor de ativos cresceu aos trilhões com poupanças líquidas nulas ou negativas, ou a situação atual na Europa, onde altas taxas de poupança se combinam com falências e destruição ou desvalorização dos ativos.
Isto não vejo que implicação tenha senão a de uma pura redistribuição de ganhos e perdas entre os jogadores de casino. É um fenómeno qualificado em economia pelo termo de «acumulação primitiva». O que interessa é o que se faz depois disso!
Varoufakis argumenta que [ ] a participação do capital na renda e sua distribuição são fundamentalmente indeterminadas. [ ], não há nada de natural ou determinístico na concentração de renda e riqueza no capitalismo.
A melhora temporária da distribuição de renda e propriedade durante o século XX [ ] foi [ ] o resultado de uma intervenção política consciente para evitar a depressão econômica e salvar o capitalismo.
E a volta do processo de concentração nos anos 1970 também não foi o resultado de leis mecânicas, mas de outra política consciente dos EUA para atrair capitais e manter sua hegemonia quando sua competitividade ante Europa e Japão se reduziu e deixou de acumular superávits no comércio internacional.
Inclino-me a concordar com o que Varoufakis afirma.
Essa discordância teórica implica em grandes divergências práticas sobre o que fazer. Como Piketty considera a tendência à concentração de renda inerente ao processo de acumulação do capitalismo, propõe apenas soluções redistributivas, [ ] e um imposto mundial sobre o capital/riqueza.
Varoufakis argumenta que um imposto sobre a riqueza, mesmo que seja factível, seria contraproducente e agravaria as dificuldades da economia. [ ], um combate eficaz à desigualdade deve atuar na formação de salários e demanda (por políticas keynesianas, por exemplo).
Também aqui, prefiro Varoufakis.
Ambos também divergem drasticamente quanto às propostas para a Zona do Euro.
Piketty quer um Estado federal unificado para a Europa, cujas autoridades centrais tenham poderes suficientes para controlar e regulamentar o capitalismo financeiro.
Varoufakis, [ ] Defende, em vez disso, um misto de títulos do BCE, resolução caso-a-caso dos problemas bancários, um programa de investimentos e um fundo de solidariedade que conservariam as soberanias nacionais e a flexibilidade das políticas econômicas [ ]
Aqui calo-me, porque vejo alguma lógica nalgum caminho federalista.
Mas não sei. Isto é já muito político.