Estou a ler as
Últimas Farpas!
Majestosa crítica ao sebastianismo
e aos primeiros meses da República
- crónica de Fevereiro de 1911.
Hoje festejam-se 374 anos de Restauração
da Independência Política do País, e
vale a pena
ler a reflexão de Ramalho Ortigão sobre a maneira
de ser portuguesa e a acerba crítica que desfere
aos primeiros dirigentes da República.
O sebastianismo nacional«A restauração de 1640 restituiu á nação portugueza a sua autonomia politica, mas não reconstituiu com egual facilidade as energias do seu organismo profundamente depauperado e deprimido pela saudosa sangria de AIcacer-Quibir e pela subsequente intoxicação moral de sessenta annos de servidão sob um dominio estrangeiro. O cérebro portuguez fora gravemente abalado pelas mais dolorosas commoções: a angustia da incerteza sobre os successos da grande expedição de Marrocos, a fulminante noticia do desastre em que irreparavelmente se submergiam tantas vidas e tantas riquezas, a perda das possessões ultramarinas, a completa ruina da fazenda publica, o aniquilamento de milhares de famílias, o lucto geral do reino, todas as cruciantes torturas da derrota, da vergonha e da miséria.
A esse temeroso abalo — dos maiores que podem fulminar um povo — correspondeu um accesso de delirio bem caracterisado pela aberração do sebastianismo.
Paralisadas na sua psycologia todas as faculdades e todas as virtudes que dão a um agregado humano a posse collectiva de si mesmo e a consciência de um fim que justifique — como em todos os organismos — a sua existência,perdida a fé, perdida a coragem, perdida a alegria, o povo portuguez appela para o milagre, absorve-se no messianismo, subordina todos os seus actos e todos os seus pensamentos ao regresso do «rei desejado» ou do «rei encoberto».
Apareceram durante a primeira metade do século xvn quatro aventureiros como sendo cada um delles o prometido D. Sebastião e o povo acreditou na identidade de todos quatro.
No século XIX, mais de tresentos annos depois da trágica jornada d'Africa, havia ainda miliiares de sebastianistas em Portugal e Brasil.
Segundo os antigos alienistas seria este um extranho caso de delirio parcial coUectivo. Os psychiatras modernos regeitam esse diagnostico, considerando as vesânias e as monomanias não como formas autónomas e distinctas espécies mórbidas, mas sim como phases clínicas de um delirio chronico iniciado por um accesso de hypocondria geral.
Hoje mesmo — talvez pela razão de que Portugal restaurado não acabou por emquanto de se restaurar completamente — persistem resíduos depressivos e taras ancestraes que, ao minimo abalo na elaboração cerebral dos motivos que determinem os seus actos, tornarão o povo portuguez tão genuinamente sebastianista como no tempo dos seus antigos agitadores e profetas, o Bandarra e o sapateiro Simão Gomes.
É evidente que elle cessou para sempre de esperar que D. Sebastião regresse, como o cavalleiro do Cisne, portador do Santo Graal despregando-se de uma matutina e aeria nebulosa para baixar á terra e descer o Chiado, espectral e benigno, rutilante como um astro, na sua esmaltada armadura de guerra, sob o elmo de ouro polido, empenachado de branco.
Não é porém menos certo que, descrido, fastiento e desdenhoso, como de uma velha cautela branca, da alforria com que o brindaram os restauradores do l.» de dezembro, tendo-se por insufficientemente remidos, na servil passividade da sua impotência para melhorar por si mesmo as condições do seu destino, elle ainda hoje aspira a uma redempção nova, e acceita, segue a victoria, com uma credulidade inverosimilmente fanática e servil, de todo o redemptor que lhe apareça palavroso e profético, bandarrista e sapateiral.
Tal é no presente, segundo se me afigura, o seu caso mórbido.
Tendo por influição do seu sangue amouriscado a noção lazaronica de que todo o trabalho é uma condemnação, uma iniquidade, ou — em mais consagrada e corrente metaphora — uma tremenda espiga, elle não vê nem jamais viu com bons olhos que outros lhe passem pela porta passeando-se de carroagem emquanto elle, como eu, trabalha ao seu tear, ao seu torno ou na sua tripeça; e a sua augusta e longínqua visão de uma justiça social resume-se philosoficamente nisto: — que elle passeie de carroagem e que trabalhem os outros.
Para se apropinquar quanto possível da realisação desse ideal, a que por decência o ensinaram a chamar o «ideal socialista», acreditou por algum tempo na coadjuvação da Providencia, e invocou-a piedosamente em ladainhas e novenas, em promessas e romagens. Não se deu bem com isso, e ficou contentíssimo quando num recente comicio politico, em que lhe deram excellencia e lhe apertaram effusivamente a mão, um sugeito, que elle nunca vira mais gordo, sorridente e melifluo, com o meneio de dedos, mimoso e percuciente de quem estivesse picando com um bico de agulha invisíveis problemas adejantes no ambiente, lhe explicou, de cima de um palanque, que a Divina Providencia não existia pela rasão muito simples e categórica de que a Republica tinha abolido Deus. E como o numeroso e conspícuo auditório, em que havia, principalmente no palanque, muitas pessoas de alto lá com ellas, como antigos ministros, guarda-livros, conselheiros e doutores, cobrisse com frenéticos aplausos aquelle orador desconhecido, espenifico e suado, o povo não querendo ser mais burro do que todos aquelles senhores, convenceu-se de que Deus cessara com effeito de existir, e tendo, ainda que vagamente, a ideia de que Deus era padre, passou d'ahi por deante a correr á pedrada ou a cascudos, como vil impostor, todo o individuo suspeito de ter coroa e de dizer missa: — Não existe, casca-se-lhe.
Assim como, libertado de reis, elle não quer mais ser escravo senão de charlatães, assim também, uma vez descarregado do sophisma divino e precisando de algum outro simbolo a que se apegar, encomenda-se devotadamente ao acaso, ao desconhecido, ao inescruíavel, e filia-se na politica, bajula o cacique e compra cautelas de três vinténs.
Insanavelmente beato pelas fatalidades atávicas da sua raça, sente a necessidade espiritual de iniciar-se em algum mistério que substitua o dogma e pede então á maçonaria um novo pão eucharistico e um ceremonial litúrgico parecido com o baptismo, com a primeira comunhão e com a chrisma. E a sua alma de cândido neophito exulta com a posse dos variados sacramentos d'essa religião nova, a que elle será tão fiel como foi á antiga, seguindo-lhe os preceitos e os ritos com a mesma compenetrada uncção com que outrora ia á missa, ao sermão e á desobriga.
Quando ninguém precisa da cooperação da sua força chamam-lhe Zé Povinho, figurando-o com uma albarda ás costas e é o lobo manso de quem todos mofam. Quando aos filósofos em desintelligencia convém açulal-o, chamam-lhe o Povo Soberano, omnipotente e absoluto.
Por sua parte elle acha-se no seio da civilisacão que o explora como o touro em tarde de corrida no meio do redondel. É puro, bravo, boiante e claro. Está ahi para o que quizer d'elle o capinha, o bandarilheiro e o espada. Acenam-lhe com o trapo encarnado e elle arrancará sempre com lealdade e bravesa, entrando pelo seu terreno, acudindo ao engano e indo ao castigo de todas as vezes que o citem para atacar, para escornar, para estripar e afinal para morrer, o que tudo para elle é unicamente marrar.»
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Texto obtido da net)