Pela enésima vez o Presidente da República pediu um consenso entre os PS e PSD para o pós-troika. No prefácio dos seus roteiros, foi mais explícito do que é costume e deixou claro o que o governo não gosta de dizer: que isto do pós-troika é apenas uma questão de semântica. O consenso pedido por Cavaco Silva é, na prática, para esta legislatura e para a próxima. Ou seja, tem como função garantir que tudo o que é fundamental é decidido com a troika a tutelar o País, Passos Coelho no governo, Seguro a liderar a oposição e ele próprio como Presidente.
Na realidade, não se percebe porque deve acabar esse consenso em 2019. Seguindo as exigências europeias, a política de austeridade para atingir os 60% do PIB em dívida pública (estamos acima dos 127%) determinados pelo Tratado Orçamental terá de se prolongar até 2035. E, como bem lembra Cavaco Silva, só nesse mesmo ano, se tudo correr bem, serão pagos os 75% da dívida à troikaque nos libertam da sua tutela direta. Leram bem: 21 anos sem soberania e com políticas de austeridade. Há quem ache que o atual sistema partidário suportará, sem implodir, um consenso largamente maioritário em torno de um ciclo de austeridade desta duração. Faltar-lhes-á algum conhecimento de história política. Muitos dizem que o Presidente atirou um balde água fria ao País. Pois eu acho que a sua proposta ou não é séria ou resulta de um otimismo irresponsável. Pelo menos no que toca ao cumprimento do Tratado Orçamental, a data aceite por Cavaco Silva é, para dizer o mínimo, muitíssimo improvável. A não ser, claro, que se martelem muito os números.
Há umas semanas a Deloitte e o Expresso convidaram-me para participar numa simulação , organizada pelo Projeto Farol. O Expresso e a SIC deram nota do exercício. Era eu, António Nogueira Leite, Daniel Proença de Carvalho (do Projeto Farol), João Duque, Jorge Marrão (da Deloitte), Miguel Beleza, Nicholas Racich (do banco BIG) e Vítor Bento. O simulador era simples (faltava-lhe, para ser mais realista, a taxa de inflação). Mas funciona como uma chamada à realidade. Basta dizer-vos que, apesar da composição do painel estar a léguas das minhas posições sobre esta crise, três dos oitos participantes acabaram por concluir que em vez de cumprirmos o Tratado Orçamental continuaremos a contrair dívida. E, que me lembre (a minha memória pode estar a trair-me), nenhum previu o seu cumprimento em 2035.
Foram pedidas apenas três previsões: qual seria o nosso crescimento anual médio nos próximos anos; qual seria o nosso saldo primário (a diferença entre a receita e a despesa pondo de fora os juros da dívida), e que taxas de juro iríamos suportar. Fui otimista. Previ um crescimento de 1,2. Está acima da maioria dos nossos crescimentos antes de 2008/2009, quando não havia crise e havia investimento público. Com os enormes constrangimentos económicos, financeiros, monetários e até orçamentais que são previsíveis, um crescimento médio desta ordem não seria mau. Previ um excedente orçamental de 1,1%, de que estamos muitíssimo longe. Não é possível, ao mesmo tempo, prever grandes crescimentos económicos e cortes na despesa pública arrasadores (ou aumentos de impostos destrutivos). Por fim, as taxas de juro. A minha previsão foi mais uma vez simpática. Ficou-se pelos 4,5%. Um pouco acima do que nos é cobrado pela troika. Abaixo das nossas recentes idas ao mercado, muito protegidos, como se sabe. É o número mágico apresentado por Machete. Claro que isto é apenas um jogo e estas previsões valem muito pouco. Mas as minhas até foram mais otimistas do que as de João Duque. Resultado da previsão? Continuaremos a contrair dívida. Em vez de descer, sobe.
Claro que se podem mexer neste ou naquele indicador. Com taxas de juro a 4%, cumprimos o Tratado Orçamental daqui a dois séculos. Se forem de 3,5% estaremos lá em 2086. Se conseguirmos um excedente orçamental de 2%, daqui a 87 anos poderemos respirar de alívio. E se rebentarmos com o país e tivermos excedentes de 3% (corresponde, por exemplo, a reduzir para menos de metade as despesas em saúde pública ou a aumentar os impostos até à revolta nas ruas), o objetivo será cumprido 2051. Claro que podemos crescer 2% e em 2113 o Tratado Orçamental será cumprido. Ou até ser varridos por um milagre económico, crescermos 3% ao ano (em média), regressando aos crescimentos anteriores ao euro, e daqui a 42 anos a coisa já se fez.
Não devemos delirar? Há quem delire por nós. O FMI previu, para garantir o cumprimento deste objetivo, que, daqui a cinco anos teremos um saldo primário que passará dos -1,6% em 2013, para 1,9% em 2015 e 3,2% em 2019. Sempre a abrir. Apesar do arraso que isso significa na economia, teremos um crescimento nominal de 3,6% (1,8% de crescimento real e 1,8% de inflação). Para este milagre económico, contribui o crescimento da procura interna em 1,3%. Perceberam bem: enquanto os serviços públicos são dizimados e os contribuintes são extorquidos a procura interna, mostrando que vive à margem do País, cresce alegremente. A taxa de juro média da dívida pública aumentará para os 4%.
Cito o economista Ricardo Paes Mamede : nos últimos 17 anos, apenas sete vezes se verificaram condições semelhantes às que o FMI prevê para Portugal até 2019. Duas vezes na Alemanha (em 2008 e 2012), uma na Áustria (2002), outra na Dinamarca (2003), outra na Suécia (1996), outra em Itália (2012) e outra no Luxemburgo (2008). Em 17 anos e 28 Estados membros (dá 476 casos), apenas sete vezes isto aconteceu. Se ficarmos apenas por duas condições (o saldo primário e o crescimento), então são 27 casos nos tais 476. O FMI prevê, para o cumprimento do Tratado Orçamental, que Portugal consiga condições financeiras e económicas semelhantes ou melhores do que os melhores anos das mais ricas economias europeias. Acho que estou dispensado de mais explicações.
Cavaco Silva pede aos partidos que negoceiem um consenso em torno de uma fantasia. Uma fantasia que alimentará por mais cinco anos esta farsa política em que vivemos. Como mostram todos os números e acabarão por ter de aceitar todas as pessoas que estejam de boa-fé e não queiram apenas aproveitar a crise para impor a sua agenda ideológica, não é possível salvar a economia, a democracia e o mínimo de bem-estar sem um enfrentamento com as imposições e metas irrealistas da União Europeia. Querem construir um consenso político em torno de uma estratégia que minore os riscos desse enfrentamento? Apesar de achar improvável que se chegue a acordo, podia-se tentar. Já este consenso, com base em previsões absurdas, é pura dissimulação política
Expresso