Charlatanice do Dia: Testes de Intolerância Alimentar
Com certeza que já se confrontaram com os testes de intolerância alimentar, visto que são testes muito publicitados na televisão, utilizados para fazer rastreios em farmácias e em consultas clínicas por alguns nutricionistas/dietistas e “terapeutas”. Eventualmente até conhecem alguém que os tenha realizado ou até aproveitou um descontinho para fazer o teste.
Mas antes de falarmos dos testes de intolerância alimentar e da sua validade, convém fazer uma clara distinção entre as alergias alimentares e as intolerâncias alimentares. Vou dar um explicação muito simplificada, só para percebermos do que estamos a falar.
Alergias alimentares
A alergia alimentar é um problema de saúde importante. É uma reação imunológica mediada por anticorpos IgE e ocorre quando a pessoa entra em contato ou ingere determinados alimentos. Os sintomas variam de ligeiros a severos e a reação não é linear, podendo variar de intensidade de episódio para episódio.
A maioria das reações é ligeira. No entanto, podem ocorrer episódios de anafilaxia, uma reação intensa após exposição ao alergénio, que coloca em risco a vida da pessoa.
Apesar de qualquer alimento poder causar uma reação alérgica, são oito os alimentos que representam cerca de 90% de todas as reações:
Ovos;
Leite;
Amendoins;
Frutos secos;
Peixe;
Marisco;
Trigo;
Soja.
A deteção da alergia é realizada de acordo com a história clínica do doente e recorrendo a testes realizados na pele (como o Teste Prick) ou testes de sangue em que se mede os níveis de IgE dos alergénios correspondentes.
Ou seja, é uma doença importante, que deve ser identificada e orientada convenientemente por um profissional de saúde.
O que são intolerâncias alimentares?
Primeiro…a intolerância alimentar existe. As pessoas podem, de facto, sentir-se mal com a ingestão de alguns alimentos sem que exista uma alergia alimentar associada. Para quem acha que pode ter esse problema, fica um artigo muito simples a explicar o que são as intolerâncias alimentares e como lidar com elas.
No entanto, o conceito de “intolerância alimentar”, da forma como é utilizada hoje, está completamente distorcido em benefício da comercialização de testes de diagnóstico e consultas.
No mercado, dominam dois tipos de testes para verificar a existência de “intolerância alimentar”.
Os testes sanguíneos realizados por laboratórios de análises clínicas, que consistem em fazer recolha de sangue e analisar a concentração de anticorpos IgG para as proteínas de cada alimento.
O VEGA test, que são os testes mais conhecidos pela população, realizados em farmácias, por nutricionistas/dietistas e por algumas clínicas (a maioria com ligação às medicinas alternativas, mas também clínicas convencionais).
Vamos ver como cada “negócio” define as intolerâncias.
O que diz um site de Análises Clínicas que disponibiliza esse tipo de exames:
“Na intolerância alimentar há a formação de anticorpos IgG dirigidos contra proteínas dos alimentos.
O organismo não consegue digerir completamente algum grupo de alimentos, provavelmente devido a uma deficiência enzimática do sistema digestivo, ou outro mecanismo desconhecido. Como consequência, são produzidas substâncias que o organismo reconhece como estranhas causando uma reação de sensibilidade alimentar.”
O que diz a WellNutri, uma das empresas líderes no mercado na realização do VEGA test:
Muitas pessoas sofrem de mal-estar digestivo, engordam e sentem-se inchadas apesar de comerem pouco e de forma saudável. E não sabem que esse tipo de problemas pode ser provocado por alimentos tão saudáveis como o tomate ou a alface ou, eventualmente, algum aditivo. O que se tenta detetar através do teste são as intolerâncias, ou seja, reações do organismo a alguns alimentos ou compostos, as quais, sem serem patológicas, produzem inflamação abdominal, gases, cefaleias ou retenção de líquidos.”
Portanto, as intolerâncias são provocadas por uma reação imunológica mediada por anticorpos IgG. Poderá estar presente quando temos um problema de saúde, um desconforto, um mal estar indefinido ou quando não conseguimos emagrecer. A “culpa” poderá ser de um ou vários alimentos – podendo mesmo ser um alimento considerado saudável.
Segundo o “negócio”, a lista de doenças que a intolerância alimentar provoca é extensa.
É de facto um problema sério que deve ser abordado e combatido, certo? Então porque é que não utilizam estes testes nos Hospitais? Os médicos não querem descobrir os problemas dos doentes e tratá-los de forma conveniente?
Perceber os testes de intolerância alimentar
O teste sanguíneo é fácil de perceber. Recolha de sangue, análise quantitativa dos IgG relativo(s) à(s) proteína(s) dos alimentos em questão e emissão de relatório.
O VEGA test é mais complexo. Para perceberem melhor, peço aos leitores que vejam o vídeo promocional da WellNutri.
O teste consiste em apertar umas fitas de velcro nos punhos e com uma canetinha fazer uns disparos nos polegares. Passado algum tempo, vem o resultado do teste, sendo que a nutricionista/dietista fará o plano alimentar do doente por forma a evitar esses alimentos. O número de alimentos estudados ronda os 500 a 800 alimentos…teste extremamente minucioso, portanto. Não há necessidade de recolha de sangue.
Como podemos observar no vídeo, o teste é muito específico e ao mesmo tempo muito pouco específico. No computador, a nutricionista/dietista mostra uma lista de alimentos aos quais a doente tem tendência à intolerância. Destaco o leite UHT 1,5% e o Nescafé. Isso significa que se beber leite com uma percentagem de gordura diferente ou se beber café de outra marca, já está tudo bem? Quanto ao Nescafé, ficou por esclarecer se apanha a gama toda ou só alguns produtos…pormenores. Claramente que café com leite está fora de questão. 🙂
Então como funciona o VEGA test, em termos “científicos”?
Recorri a um dos “cancros” da Internet, o site Lifestyle da SAPO, para ver como os profissionais que comercializam estes exames explicam o seu funcionamento. Deixo a explicação dada por uma técnica:
“O que estamos a fazer é medir a sua energia comparativamente àquilo que está classificado no ProNutri [a marca do teste] em relação a 520 alimentos. Cada grupo tem um tipo de frequência e o corpo reage ao estímulo a que está a ser sujeito. A placa de metal transmite as frequências eletromagnéticas enquanto fazemos a estimulação de impulsos nervosos na ponta dos polegares», explica a técnica.”
Já temos aqui algumas red flags dos charlatões. Utilizam o conceito energia e eletromagnético…caro leitor, sempre que vir estes termos, ative o alarme mental. Há grande probabilidade de estar a ser enganado.
Há ainda quem junte ao VEGA test a Biorresonância e Avaliação Quântica…mas vamos deixar os “quânticos” para outra altura.
Agora preparem-se…deixo a definição formal (traduzida) do que é uma máquina VEGA num artigo escrito por dois representantes do The Australian College of Allergy:
“A máquina VEGA é uma técnica de regulação bioenergética que tem origem na acupuntura e na homeopatia. Os seus proponentes afirmam que a máquina serve para diagnosticar alergias e outras doenças. O seu conceito deriva da “patologia energética”, em que o primeiro sinal de anormalidade no corpo deriva de uma alteração da carga elétrica. Se essa alteração continuar por muito tempo, dará origem a alterações estruturais.
A máquina VEGA propõe medir um destes aspetos da alteração bioenergética e regista alterações na condutividade da pele após aplicar um descarga elétrica de baixa voltagem. A localização da fonte desta resposta anormal é realizada colocando extratos homeopáticos neste circuito elétrico…”
Espero que estejam pasmados porque este era o ponto alto do artigo.
Evidência científica sobre os testes de intolerância alimentar
Vamos ver a evidência para cada um dos testes, separadamente.
Testes Laboratoriais
Como falamos, nos testes laboratoriais faz-se a análise ao sangue e mede-se os níveis de IgG relacionados com os alimentos por forma a estabelecer o padrão de intolerância alimentar.
No entanto, a presença de anticorpos IgG no sangue significa apenas que existiu exposição aos produtos alimentares. Não significa que exista alergia ou intolerância ao alimento. Aliás, a presença de anticorpos IgG no sangue poderá ser um marcador de tolerância aos alimentos…e não o inverso:
Crianças com eczema por alergias ao leite e ovos e com níveis superiores de IgG tinham maior probabilidade de desenvolver tolerância em idades mais tardias.
A “cura” da alergia às proteínas de leite de vaca parece estar associado com um aumento do IgG;
Verificou-se um aumento do IgG em pacientes que fizeram imunoterapia oral, por forma a tratar a alergia ao leite e amendoins.
A investigação nesta área continua, mas tendo em consideração que não parece existir uma correlação entre os níveis de IgG e os sintomas, estes exames laboratoriais são considerados inválidos e sem utilidade clínica, como refere a Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia.
A declaração formal da Sociedade Portuguesa está tão boa, que deixo aqui um resumo pouco resumido:
Nos testes ditos de intolerância alimentar são determinadas IgG/IgG4 específicas para uma bateria muito alargada de alimentos e aditivos, que habitualmente apenas identificam a exposição prévia ao alimento, isto é, uma resposta normal (fisiológica) do organismo.
A interpretação destes resultados, sem integração numa avaliação clínica apropriada, pode traduzir-se em consequências de extrema gravidade, levando a grandes restrições dietéticas com consequências nutricionais, metabólicas e impacto significativo na qualidade de vida, ainda mais grave quando envolve um grupo particularmente sensível aos desequilíbrios alimentares como são as crianças.
Estes procedimentos laboratoriais, que em Portugal são maioritariamente requisitados por indivíduos ou profissionais não habilitados ou mesmo por iniciativa própria, e que são promovidos directamente na comunidade, têm sido objecto de comunicados e de artigos científicos em que se alerta para os riscos e consequências claramente lesivas do interesse dos cidadãos, associando-se ainda a custos elevados.
Os testes supracitados não têm qualquer fundamentação científica, não têm utilidade diagnóstica e a sua realização e interpretação no âmbito clínico podem configurar elementos de má prática, não devendo igualmente receber qualquer tipo de comparticipação pelos sistemas de saúde.
Importa então informar a comunidade e, em particular, os profissionais de saúde, de que estes procedimentos podem ocasionar erros de diagnóstico graves com consequentes riscos na saúde individual e na saúde pública.
Testes eletromagnéticos ou homeopáticos ou tradicionais chineses!? (VEGA test)
Depois da definição do que é uma máquina VEGA, acho que já não haverá grandes dúvidas quanto a sua completa inutilidade. No entanto, vamos ver os estudos…e o que dizem, é que é um teste que não apresenta qualquer tipo de reprodutibilidade. Ou seja…se repetirmos mais do que uma vez na mesma pessoa, obtemos resultados diferentes. Não é um teste com qualquer fiabilidade ou utilidade clínica. Artigos aqui, aqui e aqui.
O artigo inglês da Wikipédia é muito conciso acerca desta charlatanice.
Ainda não acredita?
Se ainda não está convencido, pode ler estes dois artigos (aqui e aqui) extremamente completos sobre o tema.
Agora, vamos tentar desmontar duas linhas de raciocínio habituais.
1 – “Os médicos não querem é perder clientela! Estes testes tiram-lhes consultas e é por isso que são contra a sua utilização!”
Caro leitor, os médicos, como qualquer “terapeuta”, podem receitar as análises de intolerância ou adquirir equipamentos para realização do VEGA test e utilizá-los nas suas consultas. Até seria algo que ajudaria o médico em termos de marketing…”eh pá, fui à consulta e fiz logo testes das alergias a 800 alimentos!” – portanto, se funcionassem, os médicos utilizariam estes exames…se não os usam é porque têm a consciência ética e moral de que é errado enganar os doentes.
2 – “Mas eu fiz os testes, eliminei o glúten, a lactose, os ovos, o Nescafé e o Leite UHT de 1.5% e sinto-me muito melhor”.
Caro leitor, fico contente por se sentir melhor. Isso é o mais importante, sem dúvida.
No entanto, estes exames não ajudaram em nada. Senão faça o seguinte: repita o teste numa clínica diferente, que utilize uma empresa promotora do VEGA test diferente, para que não tenham acesso aos seus registos…e compare os resultados. Se os resultados forem iguais, partilhe connosco no blog e terei todo o gosto em assumir o erro. Como falamos, esses testes não têm qualquer reprodutibilidade e os resultados serão certamente diferentes.
Mas qual é o mal de fazer o teste?
Simples…vai estar a fazer uma dieta restritiva sem qualquer necessidade. E por vezes, essa restrição poderá ser importante. Além disso, pode mesmo incentivar as pessoas a ter uma alimentação menos saudável.
Conto um caso que ocorreu comigo em consulta: Senhora obesa, desesperada para perder peso, realizou os testes. Os testes disseram para evitar alguns vegetais e frutas. O organismo dela teria mais afinidade para os fumados. Portanto, a senhora deixou de comer alguns alimentos saudáveis e começou a fazer uma dieta de fumados…pode ser que a moda pegue…
Assim, concluindo o artigo, atribuímos a esta charlatanice 9 ovos podres!
9/10
Se chegaram até aqui, têm direito a prenda.
Depois do que leram, aproveitem 30 minutos de vídeo do teste de intolerância alimentar realizado à Cristina Ferreira, num desses programas científicos da televisão portuguesa.
Alguém que avise a Cristina que pode comer brócolos à vontade.