"Milhares estão a ser atirados para fora do sistema educativo"
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Quando vê o ministro Nuno Crato a ser alvo de tanta contestação, sente algum tipo de solidariedade, tendo sido, como ele, uma ministra da Educação muito contestada?
Tenho sido bastante crítica das políticas de educação seguidas nos últimos dois anos e, portanto, quando estou de acordo com as críticas que são feitas o que é mais importante é o interesse do país, da educação e dos jovens. E, objectivamente, há um conjunto de medidas que contrariam aquilo que era uma tendência de muitos anos na política educativa. Costumo dizer que os ministros da Educação, desde o Leite Pinto, tiveram um objectivo em comum, uma missão: o alargamento da escolaridade. Todos tiveram a ambição de ter mais alunos na escola, por mais anos. E isso vai desde o esforço no pré-escolar, feito pelo Marçal Grilo, ao esforço feito pelo Veiga Simão, quando estendeu a escolaridade até aos oito anos, ao esforço do Roberto Carneiro...
Houve uma continuidade que está a ser quebrada, é isso?
Uma continuidade que tinha esse objectivo. O objectivo de que os nossos jovens estivessem na escola e não a trabalhar. Nos anos 90, havia um programa específico para retirar as crianças do mercado de trabalho e colocá-las na escola. E isso é um aspecto muito interessante que deu um contributo enorme para que o país se modernizasse, para sermos aquilo que somos hoje, apesar de todas as dificuldades que ainda temos. Neste momento, muitas políticas que estão a ser seguidas contrariam este objectivo de alargamento...
Mas o Governo está a concretizar o alargamento da escolaridade obrigatória até aos 18 anos.
Sim, mas, objectivamente, milhares estão ser atirados para fora do sistema educativo...
Mas com que medidas especificamente?
Por exemplo, quando se faz um entendimento com o Ministério da Economia de que os jovens passam a ser educados pelas empresas e não pela escola.
A instituição que inventámos para resolver os problemas da educação e da qualificação foi a escola. Até hoje, não inventámos nenhuma outra. As empresas, instituições como a FLAD e outras podem e devem ajudar o esforço de educação, os pais, as comunidades locais, as autarquias. Hoje, exige-se muito das instituições para apoiarem a escola no esforço de escolaridade e de escolarização. Mas a responsabilidade última é da escola. Não é a família, não há outra instituição. É para a escola que canalizamos os recursos públicos. É na escola que colocamos os professores que formamos. É na escola que colocamos os recursos tecnológicos que conseguimos adquirir. É na escola que colocamos o nosso conhecimento sobre a melhor forma de educar e de ensinar. E, portanto, não tem para mim nenhum sentido políticas educativas que atribuem a responsabilidade da educação ao Instituto do Emprego, ao Ministério da Economia ou às empresas.
Mas é uma linha que é seguida por outros países europeus. Fala-se do exemplo da Alemanha.
Não é verdade. O que se passa na Alemanha, há um envolvimento, de facto, das empresas no esforço de formação, mas é no esforço da formação profissional que é pago pelas próprias empresas. Ou seja, num quadro institucional do funcionamento da formação profissional, em que as empresas pagam a formação que fazem aos jovens. Sendo que esta política é hoje muitíssimo contestada. Qual é o bloqueio que esse sistema cria na Alemanha? É o bloqueio do prosseguimento dos estudos. Forma muito bons carpinteiros com 13 anos, mas esses carpinteiros vão morrer carpinteiros, nunca conseguirão adaptar-se àquilo que podem ser as exigências da economia.
Esse sistema de formação na Alemanha tem sido criticado. A própria OCDE, que é insuspeita nessa matéria, não recomenda, de facto, esse sistema. Sobretudo em países como o nosso. E portanto não é um modelo para se seguir. Numa avaliação global à política educativa, este é o aspecto mais crítico que encontro.
Não vê nenhuma vantagem no sistema dual?
Não vejo nenhuma. Nem temos estrutura empresarial para termos um sistema desses. Mesmo que tivéssemos essa ambição precisávamos de reproduzir em Portugal um sistema empresarial que não temos — que é um sistema com tradição de serem as empresas a pagarem a formação dos seus próprios funcionários.
Eu não estou contra, repare, a que as empresas sejam envolvidas na formação. Pelo contrário, nos cursos profissionais, nas escolas, as empresas são envolvidas e essa dimensão de empregabilidade, essa dimensão de adaptação às exigências da vida profissional prática são muito importantes. Mas coisa diferente é entregar os meninos às empresas e dizer agora cuidem da sua formação. E é isso que eu acho que se passa com este modelo vocacional...
É uma crítica do cheque-ensino. Este Governo vai mesmo avançar com essa medida. Por que é que não colhe, na sua opinião, o argumento de que dando mais liberdade às famílias para escolher entre uma escola pública e uma privada isso vai estimular uma competição entre escolas públicas e privadas, melhorando a sua qualidade?
Há países onde cheque-ensino foi adoptado como modelo, desde logo a Suécia muito comentada neste último relatório do PISA [o estudo que compara os resultados dos alunos na OCDE em testes de literacia e que assinala uma melhoria dos resultados dos alunos portugueses e uma degradação dos resultados dos alunos suecos], e também há experiências em Inglaterra e algumas, não totalmente similares, nos EUA. O que todos os estudos e relatórios dizem sobre isso — e vale a pena ler, para não ser apenas uma questão de ideologia, de convicções, de ideias que nunca se confrontam com a realidade — é que a melhoria de qualidade conseguida com esse método, com a tal competição, é muito inferior ao aumento da desigualdade que provoca.
Há um relatório sobre o modelo sueco, que é o modelo que tem sido mais acompanhado e sobre o qual existe mais literatura produzida, que diz qualquer coisa como: as piores escolas duplicam, e as melhores aumentam um ponto percentual. Ora isto, do ponto de vista do sistema, piora a qualidade, que foi o que aconteceu à Suécia. E [depois da divulgação dos resultados do PISA] o ministro sueco já disse que é preciso repensar todo o sistema.
A questão aqui é a da igualdade. Os defensores do cheque-ensino, que se acham monopolistas do valor da liberdade, têm um problema com o valor da igualdade. Têm esse problema! Mas na área da educação, todos os regimes sociais democratas, digamos assim, na nossa Europa, construíram-se, no que respeita ao ensino, pela combinação virtuosa destes dois princípios: a igualdade e a liberdade. Porque se se aposta apenas no valor da liberdade é a resolução de um problema de uma minoria. E não da globalidade do sistema. Os nossos países, das sociedades ocidentais, precisam de sistemas inteiros, com qualidade suficiente para permitir o seu desenvolvimento.
Já defendeu que o cheque-ensino "não sai mais barato ao Estado", e que é "o mero cumprimento de uma agenda ideológica que visa beneficiar determinados segmentos do mercado da educação". Está a dizer que este Governo está a pôr a ideologia ao serviço do mercado?
Não. Estava a dizer uma coisa mais simples. O facto de o cheque-ensino ser instituído pelo Governo no diploma de financiamento das escolas privadas, respondendo àquilo que tem sido uma exigência de uma parte das escolas privadas — nem sequer de todas, é a associação que representa uma parte das escolas privadas que tem interesse nesta modalidade de financiamento da educação — revela que a intenção do Governo é apenas privilegiar essas escolas.
Uma questão como esta tem de merecer um debate público diferente do que houve, porque tem muitas implicações no sistema... ou então é apenas isso, arranjar uns cheques para passar para que umas famílias possam sustentar uns colégios que neste momento estão em dificuldade. E se for só isso, então não é preciso debate público.
O cheque-ensino não vai resolver nenhum problema da qualidade do sistema educativo, nenhum problema. Tenho a certeza absoluta. E nenhum problema do sistema de ensino é resultado da inexistência de cheque-ensino.
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Qual foi até agora a medida do actual ministério com que mais concorda e aquela que considera ser o maior erro?
São três. Ter terminado o programa Novas Oportunidades sem avaliação e sem o ter substituído por um programa que permita a qualificação dos adultos; o desmantelamento do ensino profissional nas escolas públicas — pais demorou desde 1981 a conseguir um sistema de generalização de cursos profissionais nas escolas. E a Parque Escolar. Acho que aquilo que se fez foi totalmente irresponsável, uma grande injustiça. Estamos a consumir o dinheiro que devia estar a ser usado para fazer obras nas escolas secundárias em processos jurídicos do Estado contra as construtoras e das construtoras contra o Estado. Medidas positivas... Se me recordar alguma que eu possa concordar, direi, mas sobretudo é um panorama de grande desolação.
Maria Lurdes Rodrigues
Público