Aqui reenvio um post meu que coloquei noutro tópico e que responde à objecção de que um vírus recém chegado de animais teria sempre uma probabilidade ínfima de estar muito bem adaptado a humanos (por ex, aos receptores). É verdade que teria. Mas devido ao enorme número de tentativas possíveis nos mercados de bushmeat, haverá alguns que estão mai próximos dessa adaptação por acaso (chama-se a isso pré-adaptação). É verdade que isso não chega para uma adaptação muito boa. Mas o resto da adaptação acontece por selecção natural de estirpes já dentro do organismo humano, se o vírus tiver a sorte de infectar serialmente um nº reduzido de humanos (serial passage ou serial transmission).
Post enviado antes (ao qual não houve resposta)
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Olha pá, eu vou desculpar-te por dizeres que eu "não sei de matemática" e outras coisas tipo ad hominem. Vamos lá, estás sempre a insultar, és muito convencido, mas desta vez faço de conta que não reparei.
Vamos lá ao teu argumento acima. De facto, é possível que as probabilidades de um vírus animal obter assim de uma assentada as mutações exactas que o tornariam adaptado ao humano seja tão tão pequena, que mesmo após milhões de saltos animal-humano (chamamos-lhes cross-species transmissions, CST) nenhuma variante adaptada apareceria. Isto é o que tu estás a dizer.
Esse argumento é válido. Mas não estás a contar com a evolução por selecção natural entre vírus dessa mesma espécie que estão todos dentro de um só hospedeiro. Essa selecção existe, isso fornece o mecanismo para vir a ser atingida a adaptação. Vou dar um exemplo com o SARS-Cov-2. Milhões de vezes vírus SARS-Cov-2 saltaram para humanos através da bushmeat, mas nenhum se adaptou. Vamos admitir que mesmo em milhões de casos a probabilidade de algum que salta estar logo bem adaptado é zero. Ok. Mas isso aplica-se à probabilidade de ele estar logo bem adaptado à partida, no momento da transmissão.
Mas acontece que, quando o vírus passa para um humano, começa a replicar-se durante as primeiras 2 semanas antes de as defesas imunitárias o destruírem. Como os vírus têm um tempo de geração muito pequeno, 2 semanas para eles são como milénios para nós. Vão-se formar em poucos dias muitas linhagens do vírus (isso chama-se uma quasi-species) dentro daquele hospedeiro humano. Essas diferentes variantes têm diferentes capacidades de resistir às respostas imunitárias. Mas as que resistem melhor vão gerar muito mais progenia. Logo, ao fim de 2 semanas a média em termos de nível de adaptação ao organismo humano já é muito melhor do que era no início.
Podes ver esse processo em acção, comprovado por análises das sequências virais, no artigo Demma 2005 que eu estou a colocar em anexo. Basicamente, um SIVsmm (do sooty mangabey) acabou por se adaptar a uma nova espécie de macaco, o rhesus, e todo o processo durou não mais que 2 semanas. Conheço este artigo há anos, pois ele é relevante para o meu trabalho.
Mas esse nível de adaptação é ainda muito incipiente e portanto, mesmo nesses casos o vírus acaba por ser destruído pelo sistema imunitário -- senão tínhamos 1000 pandemias a começarem em cada dia.
Mas, por cada evento desses de adaptação intra-host, às vezes, só às vezes, o vírus tem a sorte de, durante essas 2 semanas que são a janela de tempo que ele tem, saltar para um 2º hospedeiro humano. Se isso acontecer, ele entra no 2º hospedeiro já mais adaptado do que quando entrou no 1º. Começa o mesmo processo de selecção de variantes. Ao fim de 2 semanas no 2º hospedeiro ele está mais adaptado do que quando saiu do 1º.
Se isto acontecer numa série com 3 ou 4 hospedeiros, o vírus poderá sair já melhor adaptado. A este processo que envolve transmissão serial chama-se serial passage ou serial transmission e também ajuda à adaptação. Aí poderá gerar um surto epidémico.
Mas dentro daqueles que geram surtos epidémicos a maioria vão ser pequenos surtos. Até que, ao fim de séculos, um dos surtos epidémicos pode ser pandémico. A diferença entre gerar só um pequeno surto ou gerar pandemia poder ser ou porque se adaptou ainda melhor, ou porque havia condições de conectividade nos humanos altas, como há agora, ou uma mistura das duas coisas.