É certamente uma atribuição fracturante - dividiu ao meio, com rigor quase geométrico, o mundo da música, e não tanto ao centro o mundo da escrita (escrita, daquela que é destinada a ser absorvida via leitura), que se concentrou mais na concordância sobre a injustiça da escolha.
Creio que a questão/dúvida que surge em primeiro lugar quando somos surpreendidos por uma notícia destas é saber se aquilo que o Dylan faz se qualifica com "literatura". A meu ver, sim, sem qualquer dúvida. Apesar de nós, consumidores de literatura e de música, não estarmos habituados a "ler" a obra do Dylan como "lemos" um livro. A literatura do Dylan chega-nos maioritariamente através de sons (enfim, há uma parte de nós que se dedica também a ler e a apreciar as "lyrics, mas diria que isso é um prazer quase secundário, e complementar, face ao "prato principal", que é o tema musical interpretado).
Mas para entendermos o gesto, devemos olhar para o lado da produção em concreto, e é por aqui que penso que as dúvidas se dissipam, e que a atribuição do prémio se torna, no mínimo, defensável, gostando-se ou não da obra do homem. O Dylan interpreta temas musicais, mas antes disso escreve-os pelo próprio punho. Ele é o autor das letras que canta. Neste sentido, e mesmo que o output previsto seja o tema musical, o Dylan é um escritor. No momento da "criação" o seu campo de trabalho é a palavra. E dizer que são "letras para música" é redutor face aos resultados que obtém. Dizer que escreve textos para música como quem escreve poemas (e que serão mesmo poemas, em muitos casos), com uma elevada dose de elaboração artística, já estará mais próximo da realidade. Ele é provavelmente o autor mais consensual entre os seus pares quanto ao maior letrista vivo.
Esta atribuição premeia acima de tudo esse génio artístico, tal como poderia ter premiado um poeta que só se dedica a essa vertente, ou um dramaturgo que escreve para teatro, ou uma jornalista que escreve sobre a União Soviética/Rússia.
Não sou um particular fã ou sequer conhecedor da sua obra, mas atendendo a estas questões, parece-me que o Dylan é uma hipótese de escolha tão válida quanto os "nomes do costume", os tais que são literatura lida, e que dominam todos os anos as previsões das casas de apostas.
Quando ao facto de este Nobel poder ser um prémio político, desta vez não estou de acordo. Noutros casos sim, creio que a intenção da academia é criar awareness a nível mundial para determinadas situações sociais que de outro modo passariam debaixo dos radares, ou encorajar alguém a prosseguir um possível plano de paz (como foi o caso do Nobel da Paz ao Obama), mas desta feita não. Nem por um lado o activismo social do Dylan é muito vincado (nesta altura deve ser mesmo insignificante), nem ele por outro é propriamente um desconhecido das massas - antes pelo contrário (e não necessita de um evento destes para nada).
Não poderá este prémio ser apenas um "simples" reconhecimento do mérito artístico do Dylan?