Mecanismo do bull market

Da Thinkfn

Por vezes, existem fenómenos que pela sua natureza, produzem reacções quase mecânicas no Mercado de Capitais.

Por exemplo, no final dos anos 90 os gestores de fundos dos países europeus individuais estavam a entrar num processo de “Europeização”. Até esse ponto, a maior parte das acções que cada um desses gestores tinha eram essencialmente cotadas no seu mercado local. E nesse ponto, começaram a abrir-se as mentalidades para a existência de um Mercado Europeu.

O que implicou esse processo? Implicou a venda de acções nos mercados locais, e a compra de acções nos diversos mercados europeus. À partida isto parece neutro, mas na realidade esteve longe de o ser.

Porquê?

Porque quando cada gestor de fundos vendeu acções no seu mercado local, tendeu a vender um pouco de tudo (small e large caps). E depois, quando comprou acções nos “mercados europeus”, devido ao seu desconhecimento tendeu a seguir índices, como o Eurostoxx ou Eurostoxx 50, o que implicou essencialmente comprar large caps dos diversos países. Conclusão: todos venderam large e small caps, todos tenderam a comprar apenas large caps. O que fez com que as large caps no final dos anos 90 tivessem uma performance brutalmente acima das small caps, na Europa (na realidade o mesmo aconteceu nos EUA mas aí simplesmente devido à tendência de indexação, que implicava vender tudo e comprar fundos indexados ou “closet indexed”, na sua maioria ligados ao S&P500).

Portanto, um fenómeno nada relacionado com a dimensão da capitalização bolsista das empresas, acabou por determinar mecanicamente o comportamento da cotação destas.

Ora, nos dias correntes estamos a assistir a um Bull Market fantástico. Esse Bull Market coincide com crescimento económico, com baixa inflação, com valorizações aparentemente razoáveis, e com um crescimento exponencial da dívida a nível mundial.

Pode parecer que existem portanto razões que justificariam o próprio Bull Market, não sendo necessária mais nenhuma explicação. No entanto, devido à forte evidência de que a tomada de dívida é insustentável, e ao facto de uma das principais fontes – o Imobiliário – estar a secar, e ainda ao facto de que mesmo com todos esses ingredientes presentes não ser normal que os mercados assumam uma subida vertical sem correcções, isto leva a crer que existe mais alguma mecânica em funcionamento.

Eu estou em crer que existe, e que é relativamente simples. Resume-se ao seguinte:

A tomada de dívida de que temos falado amplamente, e que tem como contrapeso a criação monetária – de poupança, é algo que afecta a quase totalidade da sociedade. Desde os escalões mais baixos até aos extractos mais elevados de rendimento, todas as classes estão a tomar mais dívida; A dívida funciona como rendimento, ou seja, quando quem contrai dívida para comprar algo, para quem providencia esse algo é-lhe indiferente se o pagamento provém de rendimento ou dívida, para si produz sempre rendimento. Assim, a tomada de dívida inflacciona receitas de empresas, resultados de empresas, e rendimentos de quem trabalha para as empresas (quer seja em número de trabalhadores, quer seja na sua remuneração que tende a aumentar); A dívida, ao produzir dinheiro, tende a inflaccionar o preço de todos os activos; Agora o ponto interessante. Os activos, mobiliários e imobiliários, não estão distribuídos de forma equitativa na sociedade. As classes altas possuem uma quantidade relativa destes activos MUITO superior às classes médias ou baixas, particularmente nos activos mobiliários. Recebem portanto também uma % desproporcionada dos fluxos de rendimento desses activos, fluxos esses que num cenário de tomada de dívida são fortemente inflaccionados (daí estarmos presentemente perante margens de lucro recorde); Ou seja, a tomada de dívida que é gerada por toda a população, tende a gerar e concentrar poupança nas classes mais elevadas.

O que significa isto? Que a tomada de dívida de uma população com propensões diversas para investir em activos mobiliários, é depois transformada em poupança numa classe onde essa propensão é muito superior à média da população !

Conclusão:

Para lá do efeito directo que a criação monetária tem no preço da generalidade dos activos, existe ainda um outro efeito – potencialmente mais forte ainda – que dita que os activos mobiliários se valorizem mecanicamente, mesmo perante perigos evidentes para todo o cenário económico. Isto porque existe uma diferente propensão para a alocação a activos mobiliários entre as classes que tomam a dívida, e as classes que tendem a acumular a poupança que resulta dessa tomada de dívida (se a propensão fosse semelhante, só se teria o efeito directo da criação monetária sobre o preço dos activos).

Talvez isto explique porque é que num momento em que a maior parte da população já sofre problemas económicos evidentes, que não possuem solução fácil pois derivam da existência de um stock recorde de dívida cujo serviço já só é possível com aumentos sucessivos desse stock (embora pouco visível, a economia sem essa expansão tenderia a contrair fortemente), continuemos a assistir a uma subida quase diária de todos os mercados de valores mobiliários.


Autor

Incognitus, em 17/2/2007

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