As secas dos presidentes e ministros

Da Thinkfn

(Segundo artigo de uma série que analisa por dentro as relações entre Portugal e Angola. O primeiro da série é Sucessos e insucessos das parcerias com Angola)

Recentemente, estive numa Conferência com mais dois colaboradores da nossa Organização, em que presidiram à mesma dois importantes Ministros do governo português. Estiveram presentes mais de 300 Quadros superiores da Administração Pública e empresas privadas.


A conferência, como habitualmente, iniciou-se com 40 a 50 minutos de atraso, o que levou a que os presentes se sentassem nos poucos lugares disponíveis, enquanto outros se encostaram, desconfortavelmente, às paredes da sala e aos sofás circundantes


Apesar de terem falado os dois Ministros, nada acrescentaram ao que tinha sido recentemente legislado e publicado sobre a matéria em causa.

Saímos todos a olhar uns para os outros, desolados sem saber o que fazer no dia seguinte !


Quanto custou esta Conferência, com a deslocação de Quadros superiores a nível nacional ? Quanto custou o desalento ?


À noite, na abertura dos telejornais referiram a notícia da Conferência, salientando a visão e gestão estratégica do evento !


Este acontecimento leva-me a estabelecer um paralelo com umas descrições apresentadas no livro do Embaixador António Pinto da França, "Angola o dia- a-dia de um Embaixador", quando refere, a determinada altura, nas pág s 41, 42 e 43, o seguinte:


Luanda, 11 de Dezembro de 1983


"É hoje o aniversário das FAPLA- Forças Armadas Populares de Angola que, assim, como D. João V ficou "O Magnânimo" ou o Agostinho Neto "O Saudoso" têm o definitivo direito ao cognome de "As Gloriosas". Quer nos discursos oficiais, quer na rádio, quer no "Jornal de Angola", aquele epíteto sempre antecede religiosamente qualquer referência às Forças Armadas"


Nós o Corpo Diplomático, havíamos sido convidados para uma recepção que o Presidente dava em honra das "Gloriosas", como o convite indicava, na "zona verde" da casa do Protocolo no Bairro do Saneamento. A "zona verde" é um jardim com uma área cimentada, nas traseiras da antiga "Guest House" do nosso Governo.

….


Os Chefes de Missão, muito solenes, aglomeravam-se à entrada. As Senhoras estavam de comprido, algumas de cauda, no cumprimento de vagas noções sobre o aparato presidencial, que se tornam patéticas em certos quadros e certas latitudes. Banhava-nos o pôr-do-sol incandescente, o mesmo de há vinte séculos. Todos nós, desde os mais insólitos aos mais compostos, estávamos aureolados de luz esplendorosa que como que lavava mas também afagava tudo quanto era transitório ou irrisório.

Soltaram-nos no relvado e para ali ficámos uma hora à espera que o Presidente chegasse, enquanto tentávamos em vão beber um whisky ou debicar as iguarias expostas num aparador ferozmente guardado por uma multidão de criados.

Ao fundo numa vasta esplanada de cimento, de frente para nós, estava posta uma mesa com toalha portuguesa, muito bordada, a cobri-la até aos pés. Contei os lugares, eram treze! No centro, uma cadeira de alto espaldar adamascado esperava o Presidente para uma ceia que não seria a última.


O encarregado de negócios chinês, a transbordar simpatia, energia e satisfação, demasiadas para corpo tão pequeno, contava-me com sorrisos do maior contentamento de como vive há um ano num quarto do Hotel Panorama, de como come incansavelmente os mesmos exactos horrores – carapau, frango, carapau, frango – quando fomos interrompidos pelo rufar dos tambores, das baterias da orquestra arrumada a um canto.

Simultaneamente, disparam os efeitos de luzes. Eram de cores variadas e giravam em todas as direcções.


Chegara o Presidente que logo emergiu duma esquina da casa. Seguido dum bando de guarda-costas, percorreu em passos ginasticados e muito rápidos a distância que o separava da mesa. Não olhou para nós, um punhado de embaixadores a servir de decoração, não nos sorriu, não nos acenou. Com a mesma presteza com que chegara, assim se sentou à mesa com doze misteriosos senhores de fato escuro, personagens inacessíveis que pairam acima do Governo, em mistério e reclusão, o "Bureau" político. Num passe de prestidigitador o jantar apareceu na mesa e o "cérebro" da República Popular de Angola debruçou-se sobre os pratos e comeu rápido e silencioso.


Deixaram-nos então petiscar e beber, a orquestra atacou sambas e nós, cortesãos irrepreensíveis, dançamos para os Senhores, na esplanada frente à mesa.


Por ali corriam subtis correntes e divergentes modos. De Roma antiga à Península . da Península a África, de Moscovo a África, das tribos negras vindas do Norte, até ao Reino do Congo. O sangue percorre as veias dum só corpo, o espírito sopra como vento sobre todas as águas !..."

Em 1983, já era assim em Angola e, apesar de ter decorrido 22 anos, ainda é assim em Angola e Portugal.


Não obstante, as duas selecções nacionais de futebol terem sido seleccionadas, no último sábado, para o mundial de 2006, Portugal e Angola, atravessam anos difíceis.

Têm doenças comuns, como, entre outras, uma Administração Pública desmotivada, pesada e ineficiente. Na cabeça de cada um há sempre uma ideia presente de que os governos têm a obrigação de resolver os problemas de cada um.


Recordo que o Presidente Kennedy colocou aos Americanos a seguinte questão " não perguntem o que é que o país pode fazer por vós, mas sim, o que é que cada um de vós pode fazer pelo país".


O grande problema de ambos os países é a falta de credibilidade, "o apostolado do exemplo" dos presidentes, dos ministros, dos dirigentes que não falam a verdade e que não confrontam seriamente as mudanças e reformas estruturais, que é preciso implementar.


Mais de 80% da população em Angola não tem condições mínimas de saúde, educação e até alimentação. Contudo, está a ser construída na baixa de Luanda uma nova sede da SONANGOL (empresa monopolista dos petróleos) com sofisticadas tecnologias de engenharia, dada a sensibilidade das fundações e também porque o edifício com mais de 20 andares é dotado com o mais inteligente sistema de gestão do mundo, conforme é referido em Luanda .


É conhecido que até estão presentes neste edifício a filosofia de quatro escolas de Engenharia e Arquitectura (inglesa, sul -africana, sul coreana e portuguesa).


Ao lado deste grande edifício em construção, e outro a construir como réplica deste, está o antigo Hotel Turismo, destruído no grande confronto entre a UNITA e o MPLA, mantendo-se, provavelmente, em ruínas para mostrar às gerações vindouras…


A propósito de edifícios inteligentes, nos últimos 25 anos, através de gestão pública, vi destruir e reconstruir, por três vezes, o Hotel Trópico. Desta vez acredito que seja para ficar porque a propriedade e gestão é de uma empresa privada.


Em Portugal, as nossas "obras", políticas e inteligentes para as gerações vindouras serão a OTA e o TGV…


O desperdício em Angola e particularmente em Luanda é brutal, designadamente nas festas de fim-de-semana em que se enchem os hospitais de acidentados, há viaturas partidas das diferentes gamas, das mais baixas às mais altas do mundo, candeeiros partidos, lixo a sair dos contentores, etc. Esta situação agrava-se ainda mais com o facto de às 6ªa feiras não haver produção, porque se aproxima o fim de semana, sendo a 2ª feira um dia de recuperação que aproveitam para dormir com a cabeça sobre a secretária, ou sentados no chão no próprio posto de trabalho.


Em Portugal, os fins de semana e as greves também marcam negativamente a produção.


Naturalmente, que são legítimas, desejáveis e saudáveis. O que não é legítimo, desejável e saudável é desligar da produção, antes do fim de semana e da greve e ligar à produção depois do fim de semana e da greve… Aliás, sempre que há uma ocorrência paramos, olhamos, admiramos e, por vezes, provocamos outro acontecimento …


Quero, contudo, registar que, recentemente, as linhas de crédito da China em Angola, uma delas de mais de quatro mil milhões de dólares americanos está fundamentalmente vocacionada para infra-estruturas de vias terrestres e ferroviárias, a nível nacional e, certamente, terá um impacte muito positivo nos mais de oitenta por cento da população desfavorecida.


Registo, também, a coragem da decisão do Governo de Angola em contratar uma prestigiada empresa alemã de consultoria e de fiscalização das obras das infra-estruturas referidas.


Poderia ser uma empresa portuguesa, mas os Presidentes e Ministros ajudam muito pouco… Espero que Angola venha um dia a construir auto-estradas e a utilizar a "via verde" que é um sistema tecnológico português com sucesso mundial, já testado e implementado nas auto-estradas portuguesas e outras.


Considero que faltava a Angola e Portugal pactos de parcerias decisivos, determinados e apostas persistentes e teimosas, que só Portugal e Angola podem fazer na base da confiança mútua entre presidentes, ministros e dirigentes que falam a mesma língua e têm a mesma cultura.


Mas, na prática, os interesses pessoais dos amigos, dos primos, das comissões, etc são divergentes e estamos de costas viradas uns para os outros, enquanto os chineses espreitam as oportunidades, com grande pragmatismo e eficácia.


Permito-me referir um pequeno acontecimento ocorrido com o meu neto, João, de quatro anos.


No último Verão, o pai ensaiava, pedagogicamente, a autonomia de ir a casa sozinho, buscar pão para dar aos patos e peixes de um lago, apesar de alguma distância e perigos circundantes.


Entendeu a mensagem e lá foi sozinho, conduzido pela sua própria bússola. Na volta, (sensivelmente metade do percurso) até avistar os pais e os avós, teve a protecção amiga mas exagerada da empregada Ema.


Chegou com dois pães já duros dos dias anteriores. Entretanto, começou a comer um deles. O avô Saul insistiu que partilhasse o pão, em pequenos pedaços para brincar com os peixes e os patos do lago…


Ao longe, a avó Isabel divertia-se, sarcasticamente, em silêncio, porque conhecia bem o romantismo do Saul, enquanto a "Nona", nascida em Moçambique, filha de goeses, interpretava em silêncio o diálogo em torno do pão.


Teimosamente, em silêncio, o João, à maneira chinesa, comia confortavelmente um dos pães, evidenciando que primeiro estava ele e depois ele e, só por último, os patos e peixes.


Segundo diz o ditado português e que me parece também chinês "só faz mal a quem não tem fome!"


Os portugueses instalam-se, romanticamente, em Angola e distribuem pão aos patos e peixes… enquanto os pragmáticos chineses instalam-se em Angola, levam dólares americanos e trazem "petrodólares".


A linha de crédito, de quatro mil milhões de dólares americanos, deve dar uma facturação de serviços bem superior para os chineses. Restam algumas "côdeas de pão" para as grandes empresas construtoras portuguesas lá instaladas.


Angola, com uma produção próxima a um milhão de barris de petróleo por dia, dirige, maioritariamente, a distribuição para os americanos, franceses e agora chineses, restam, ainda, alguns "garrafões" para os portugueses…


Para os chineses, o petróleo de Angola é o pão mais precioso numa economia a crescer de forma sustentada próximo dos dez por cento.


Os presidentes, ministros e dirigentes portugueses e angolanos fazem, romanticamente, reuniões estratégicas…


Autor

Miguel Maria, em 17/10/2005

Comentários

Existe no fórum um tópico destinado a comentar este artigo.