A bolha invisível

Da Thinkfn
Revisão das 05h44min de 26 de setembro de 2008 por Bmwmb (discussão | contribs)

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Uma das coisas que tenho comentado aqui no Think Finance é que existe novamente uma Bolha no mercado. Ou melhor, existe uma Bolha de crédito na economia que faz com que o mercado possa também apelidar-se de Bolha.

Essa visão está longe de ser consensual. No mundo, mesmo existindo quem ache que os mercados estão esticados ou necessitam de uma correcção, praticamente ninguém fala de bolha. O consenso é aliás para um “Soft landing”, para uma economia “Goldilocks”, nem demasiado quente, nem demasiado fria. O consenso é ainda que para os níveis de taxas de juro presentes, os múltiplos de mercado são baixos ou razoáveis, e que portanto existe espaço para mais subidas.

E subidas não têm faltado. Até ao ponto de os mercados estarem a bater recordes de baixa volatilidade e ausência de quedas, com a maior sequência de subidas da história do S&P sem uma queda de 2% num dia ou de 10% em qualquer número de dias.

Com os resultados das empresas a subir, as taxas baixas e a prometer continuar baixas, o Imobiliário em queda mas sem afectar o mercado e supostamente já a estabilizar, porquê falar de Bolha?

A razão é só uma: O Crédito e a sua brutal expansão em todo o mundo Ocidental.

O Crédito, nunca é demais reafirma-lo, é consumo antecipado. Além disso o Crédito tem uma outra característica: quando alguém pede Crédito e o usa numa compra, esse Crédito vai constituir receitas e rendimento para quem efectua a venda. E depois, quem efectua a venda vai pagar aos seus fornecedores também com parte desse Crédito, e esses, por sua vez, vão fazer as suas compras também com parte do Crédito original.

Ou seja, a tomada de dívida funciona como rendimento para quem a contrai, e vai inflaccionar o rendimento de quem recebe o produto dessa dívida, aumentando também a sua capacidade de endividamento. Forma-se neste ponto um ciclo virtuoso de tomada de dívida.

É esse ciclo virtuoso de tomada de dívida que inflacciona a totalidade da actividade económica, aumentando as receitas e lucros de todas as empresas mesmo daquelas que não estão nos mercados onde se está a criar a dívida. Ao contrário do debate que muitas vezes se faz de qual a % do Crédito que acaba em consumo (50%? 60%?) a realidade é que o que acaba em consumo é um MÚLTIPLO daquilo que é originalmente pedido.

É esse ciclo virtuoso de tomada de dívida que permite dizer que os fundamentais da maioria das empresas, enquanto dura esse ciclo, estarão sobreavaliados, mesmo que os seus múltiplos de mercado pareçam normais. Isto porque a própria actividade das empresas estará subavaliada por uma componente que não existiria, se não existisse uma expansão descontrolada do crédito.

Existem ainda outras consequências observáveis desta Bolha de crédito: aumentam as margens de lucro, pois o rendimento dos trabalhadores – custo das empresas – cresce a um ritmo inferior à expansão do crédito e seus efeitos nas receitas e resultados das empresas; e aumentam as desigualdades, pois a expansão do crédito inflacciona o valor dos activos – mobiliários e imobiliários – e estes são detidos maioritariamente pelas camadas mais ricas da população.

A Bolha de crédito presente, porém, é especial.

Normalmente existem vários travões para o Crédito:

  • A capacidade de quem o contrai, o pagar;
  • As reservas dos bancos que os impedem de dar Crédito infinito;
  • Quando os bancos procedem à venda dos Créditos, a quantidade de Crédito de boa qualidade que possuem para vender (porque os Institucionais só tendem a comprar Crédito de boa qualidade);
  • Quem esteja disposto a ficar com Crédito de má qualidade, já que os devedores de boa qualidade rapidamente se esgotam numa expansão descontrolada de Crédito.

O que aconteceu nos últimos 10-12 anos, foi que existiu uma transformação brutal nestes travões, que levou a que se atingissem níveis de endividamento face ao rendimento historicamente recorde, mesmo ao nível do serviço da dívida e não obstante as baixas taxas de juro.

As regras sobre quais as necessidades de reservas foram relaxadas, e o mercado de titularização de créditos desenvolveu-se de forma exponencial. Foram criadas (e expandiram-se brutalmente) novas formas de titularizar crédito que permitiram transformar Crédito de relativa baixa qualidade (A/BBB) em Crédito 90-95% AAA/AA e 5-10% A/BBB/BBB-. Essas formas foram os CDOs, Collateralized Debt Obligations.

Como é que um CDO funciona? Basicamente coloca-se uma quantidade de créditos diversificados (em termos de qualidade, originação, etc) numa estrutura, e depois divide-se o risco dessa estrutura em fatias de forma a que as fatias de “baixa qualidade” e “alto retorno” assumem as primeiras perdas (equity, overcollaterization, etc), seguidas de fatias de ratings progressivamente mais elevados (BBB-, BBB, A) até se chegar às (maiores) fatias que como não estão expostas às primeiras perdas, recebem ratings elevados (AA, AAA).

O que é que os CDOs vieram permitir? Vieram permitir que mesmo que os créditos que lhes deram origem fossem de baixa qualidade (A, BBB), a maior parte das tranches dos CDOs seriam classificadas com ratings elevados (AAA, AA), tornando assim possível vender a maior parte desse crédito a Instituições (incluindo Bancos Centrais).

Por sua vez, a perfusão de hedge funds sedentos de yield permitiu aos originadores do crédito livrarem-se também das tranches de menor qualidade – sendo que estas apesar de tudo ainda apresentavam ratings minimamente aceitáveis (A, BBB, BBB-).

Ou seja, com este género de produtos estruturados conseguiu-se arranjar forma de transformar crédito que seria difícil de alguém assumir, em crédito para o qual existiam investidores quase infinitos (incluindo Bancos Centrais) disponíveis para comprar !

Isto teve outras consequências. Por um lado para os originadores de crédito tornou-se irrelevante a qualidade do crédito que estavam a gerar. Afinal, passados poucos dias ou semanas de o gerarem, já o tinham vendido junto com o risco que ele representava, e eram pagos à cabeça com uma margem !

E mais, para quem comprou este crédito TAMBÉM se tornou irrelevante a qualidade do mesmo, pois fruto do “milagre” da estrutura do CDO, independentemente da qualidade do crédito original, o que estes investidores maioritariamente compram é crédito AAA/AA !!

Obviamente isto esteve na origem de uma explosão mecânica de Crédito na qual todos ganham, e de uma descida brutal dos spreads de crédito para todas as qualidades. Além disso, deu-se outra consequência óbvia: como qualquer pessoa conseguia obter crédito, ninguém entrava em incumprimento (sempre que seja possível a um devedor refinanciar-se é impossível que ele entre em incumprimento). Portanto o incumprimento baixou para níveis mínimos. O que mais uma vez validava o “baixo risco” de todos estes devedores cujo risco já era, diga-se, irrelevante! Era possível este refinanciamento tanto porque a qualidade do crédito era irrelevante, como porque o activo para os qual ele se destinava – o imobiliário – era ele próprio inflaccionado pelo crédito concedido sem limites.

Mas claro, a subida dos preços do imobiliário a taxas muito superiores ao rendimento tem duas consequências:

  • O crédito expande mais rapidamente que o rendimento;
  • Mais tarde ou mais cedo o preço das casas mesmo com taxas de juro baixas e com crédito sem limites, fica fora do alcance da maior parte dos compradores.

Isso aconteceu, e levou a que o crescimento dos preços terminasse e as transacções de casas caíssem. Tal leva a uma outra consequência: deixa de ser possível refinanciar dívida com base em activos cada vez mais caros.

Ora, se se concedeu crédito sem restrições ou critérios pelos motivos apontados, e se o incumprimento esteve durante algum tempo contido tanto devido à concessão de crédito nesses termos, como devido à subida das casas de forma exponencial, o que acontece quando deixam de estar livremente disponíveis os refinanciamentos? Uma rápida subida do incumprimento para níveis recorde.

É isso que hoje se está a suceder. Mas que o mercado ainda ignora.

O mercado ignora porque “a economia está bem”, mas não se dá conta de que os níveis de tomada de dívida – que como explicamos funcionam como rendimento e fazem-no de forma multiplicativa – são o que faz a economia estar bem. E o motor que permitia esses níveis de tomada de dívida está a gripar.

Ora se a dívida funciona (para quem compra) como rendimento, o que acontece quando se toma MENOS dívida será equivalente ao que acontece quando o rendimento cai. Quando o rendimento cai, cai o consumo, e a capacidade dos recipientes desse consumo para tomar dívida, cai também. Portanto, assim que se tome menos dívida, ainda menos dívida será possível tomar. E estaremos perante um ciclo vicioso.

Resumindo, num Ponzi financeiro, como o que se observou via o ciclo virtuoso de criação de dívida, tudo corre incrivelmente bem, até que, também como em qualquer outro Ponzi, se entra no ciclo vicioso em que tudo corre incrivelmente mal. A Bolha, porém, é invisível porque praticamente ninguém no mercado comenta – ou sequer reconhece - todas estas mecânicas, sendo apenas o consenso do mercado que para os níveis actuais de taxas de juro, os múltiplos de mercado são baixos ou razoáveis.

Por fim um último pormenor acerca dos CDOs, apesar das tranches de baixa qualidade receberem ratings de BBB, BBB-, ou seja ratings que parecem passíveis de ser inseridos num portfolio de dívida um pouco mais agressivo, existe um outro pormenor que o mercado está a ignorar. É que ao contrário de um portfolio de obrigações BBB, BBB- que mesmo numa situação de desgraça económica teria defaults de 10-15% do portfolio onde depois ainda se recuperaria 30-40% dos montantes via colateral (gerando assim perdas globais de 10%, por exemplo), um portfolio de tranches de CDO com rating BBB, BBB- terá outro comportamento.

Este comportamento deriva da forma como é estruturado um CDO, e garante que se uma perda de 5% no CDO pode implicar um retorno da totalidade do capital investido numa tranche BBB/BBB-, uma perda de 10% no CDO já poderá implicar uma perda TOTAL da tranche BBB/BBB- onde acontecer, ou seja, um portfolio de tranches destas pode facilmente sofrer perdas muito elevadas ou mesmo de 100% se o incumprimento se alastrar num dado segmento de mercado.

Isto inevitavelmente vai, assim que o mercado se der conta do problema, levar a um “Credit crunch” quanto mais não seja na disponibilidade para alguém ficar com estas tranches. Além de potencialmente produzir perdas muito elevadas em quem tiver portfolios nelas baseados.


Autor

Incognitus, em 14/2/2007

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